quarta-feira, 1 de abril de 2009

O jogo dos Nobres


Difícil será descobrir, dada a incerteza dos documentos antigos, a época precisa em que viveu e reinou na Índia um príncipe chamado Iadava, senhor da província da Taligana. Seria, porém, injusto ocultar que o nome desse monarca vem sendo apoiado por vários historiadores hindus, como um dos soberanos mais ricos e generosos de seu tempo.

A guerra, como o cortejo fatal de suas calamidades, muito amargou a existência do rei Iadava, transmutando-lhe o ócio e o gozo da realeza nas mais inquietantes atribuições. Adstrito ao dever, que lhe impunha a coroa, de zelar pela tranqüilidade de seus súditos, viu-se o nosso bom e generoso monarca forçado a empunhar a espada para repelir, à frente de pequeno exército, um ataque insólito e brutal do aventuramento Varangul, que se dizia príncipe de Celi. O choque violento das forças juncou de mortos os campos de Dacsina e tingiu de sangue as águas sagradas do rio Sandhu. O rei Iadava possuía - pelo que nos revela a crítica dos historiadores - invulgar talento para a arte militar; sereno em face da invasão iminente, elaborou um plano de batalha, e tão hábil e feliz foi em executá-lo que logrou vencer e aniquilar por completo os pérfidos perturbadores da paz do seu reino.

O triunfo sobre os fanáticos de Varangul custou-lhe, infelizmente, pesados sacrifícios; muitos jovens "quichatrias"(1) pagaram com a vida a segurança de um trono para prestígio de uma dinastia; e entre os mortos, com o peito varado com uma flecha, lá ficou no campo de combate o príncipe Adjamir, filho do rei Iadava, que patrioticamente se sacrificou, no mais aceso da refrega, para salvar a posição que deu aos seus a vitória final.

Terminada a cruenta campanha e assegurada a nova linha de suas fronteiras, regressou o rei ao suntuoso palácio de Andra, baixando, porém, formal proibição de que se realizassem as ruidosas manifestações com o que os Hindus soíam festejar os grandes feitos guerreiros. Encerrando em seus aposentos, só aparecia para atender aos ministros e sábios brâmanes quando algum grave problema nacional o chamava a decidir, como chefe de estado, no interesse e para felicidade de seus súditos.

Como o andar dos dias, longe de se apagarem as lembranças da penosa campanha, mais se agravaram a angústia e a tristeza que, desde então, oprimiram o coração do rei. De que lhe poderiam servir, na verdade, os ricos palácios, os elefantes de guerra, os tesouros imensos, se já não mais vivia a seu lado aquele que fora sempre a razão de ser de sua existência?

As peripécias da batalha em que pereceu o príncipe Adjamir não lhe saiam do pensamento. O infeliz monarca passava longas horas traçando, sobre uma grande caixa de areia, as diversas manobras executadas pelas tropas durante o assalto. Com um sulco indicava a marca da infantaria; ao lado, paralelo ao primeiro, outro traço mostrava o avanço dos elefantes de guerra; um pouco mais baixo, representava por pequenos círculos, disposto em simetria, perfilava a destemida cavalaria chefiada por um velho "radj"(2) que se dizia sob a proteção de Tchandra, a deusa da lua. Ainda por meio de gráficos esboçava o rei a posição das colunas inimigas, desvantajosamente colocadas, graças à sua estratégia, no campo em que se feriu a batalha decisiva.

Uma vez completado o quadro dos combatentes com as minudências que pudera evocar, o rei tudo apagava, para recomeçar novamente como se sentisse íntimo gozo em reviver os momentos passados na angústia e na ansiedade. Hora matinal em que chegavam ao palácio os velhos brâmanes para a leitura dos "Vendas"(3), já o rei era visto a riscar na areia os planos de batalha que se reproduzia interminavelmente.

- Infeliz monarca! - murmuravam os sacerdotes penalizados.

- Procede como um "sudra"(4) a quem Deus privou poderosa e clemente, poderá salvá-lo!

E os brâmanes erguiam preces, queimavam raízes aromáticas, implorando à eterna zeladora dos enfermos que amparasse o soberano de Taligana.

Um dia, afinal foi o rei informado de que um moço brâmane - pobre e modesto - solicitava uma audiência que tinha pleiteado havia já algum tempo. Como estivesse, um momento, com boa disposição de ânimo, mandou o rei que trouxessem o desconhecido à sua presença.

Conduzindo à grande sala do trono foi o brâmane interpelado, conforme as exigências da praxe, por um dos vizires do rei.

-Quem és, de onde vens, o que desejas daquele que, pela vontade de Vichnu(6), é rei senhor de Taligana?

- Meu nome – respondeu o jovem brâmane - é Lahur Sessa (7) e venho da aldeia de Namir, que trinta dias de marcha separam dessa bela cidade. Ao recanto em que eu vivia chegou a noticia de que nosso bondoso rei arrastava os dias em meio de profunda tristeza, amargurado pela ausência de um filho que a guerra viera a roubar-lhe. Grande mal será para o país, pensei, se o nosso dedicado soberano se enclausurá, como um brâmane cego, dentro de sua própria dor. Deliberei, pois, inventar um jogo que pudesse distraí-lo e abrir em seu coração as portas de novas alegrias. É esse o desvalioso presente que desejo nesse momento oferecer ao nosso rei Iadava.

Como todos os grandes príncipes citados nesta ou naquela página da História, tinha o soberano hindu o grave defeito de ser excessivamente curioso. Quando o informaram da prenda de que o moço brâmane era portador, não pôde conter o desejo de vê-la e apreciá-la sem mais demora.

O que Sessa trazia ao rei Iadava consistia num grande tabuleiro quadrado, dividido em sessenta e quatro quadradinhos ou casas, iguais; sobre esse tabuleiro colocavam-se, não arbitrariamente, duas coleções de peças que se distinguiam, uma da outra, pelas cores branca e preta, repetindo porém simetricamente, os engenhosos formatos insubordinados e curiosas regras que lhes permitiam movimentar-se por vários modos.

Sessa explicou pacientemente ao rei, aos vizires e cortesãos que rodeavam o monarca em que consistia o jogo, ensinando-lhes as regras essenciais:

- Cada um dos partidos dispõe de oito peças pequeninas: Peões. Representam a infantaria que ameaça avançar sobre o inimigo para desbaratá-lo. Secundando a ação dos peões vem os elefantes de guerra(8) representando por peças maiores e poderosas; a cavalaria indispensável no combate, aparece, igualmente no jogo, simbolizada, por duas peças que podem saltar, como dois Corcéis, sobre as outras; e, para intensificar o ataque, incluem-se – para representar os guerreiros cheios de nobreza e prestigio - os dois "vizires"(9) do rei. Outra peça, dotada de amplos movimentos, mais eficiente e poderosa do que as demais, representará o espírito de nacionalidade do povo e será chamada a rainha. Completa a coleção uma peça que isolada pouco vale, mas se torna muito forte quando amparada pelas outras. Ó rei.

O rei Iadava, interessado pelas regras do jogo não se cansava de interrogar o inventor:

- E por quê é a rainha mais forte e mais poderosa que o próprio rei?

- É mais poderosa - argumentou Sessa - porque a rainha representa, nesse jogo, o patriotismo do povo. A maior força do trono reside, principalmente, na exaltação de seus súditos. Como poderia o rei resistir ao ataque dos adversários, se não contasse com o espírito de abnegação da pátria?

Dentro de poucas horas o monarca, que aprendera com rapidez todas as regras do jogo, já conseguia derrotar os seus dignos vizires em partidas que se desenrolavam impecáveis sobre o tabuleiro.

Sessa, de quando em quando, intervinha, respeitoso, para esclarecer uma dúvida ou sugerir novo plano de ataque ou de defesa.

Em dado momento o rei fez notar, com grande surpresa que as posições das peças, pelas combinações resultantes dos diversos lances, parecia reproduzir exatamente a batalha de Dacsina.

- Reparai - ponderou o inteligente brâmane - que para conseguir a vitória, indispensável se torna, de vossa parte, o sacrifício desse vizir!

Indicou precisamente a peça que o rei Iadava, no desenrolar da partida - por vários motivos- grande empenho pusera em defender e conservar. O judicioso Sessa demonstrava, desse modo que o sacrifício de um príncipe é, por vezes, imposto como uma fatalidade, para que dele resultem a paz e a liberdade de um povo. Ao ouvir tais palavras, o rei Iadava, sem ocultar o entusiasmo que lhe dominava o espírito, assim falou:

- Não creio que um engenho humano possa produzir maravilha comparável a esse jogo interessante e instrutivo! Movendo essas tão simples peças que um rei nada vale sem o auxílio e a dedicação constante de seus súditos. E que, às vezes, o sacrifício de um simples peão vale mais para a vitória do que a perda poderosa peça.

E, dirigindo-se ao jovem brâmane, disse-lhe:

- Quero recompensar-te, meu amigo, por este maravilhoso presente, que de tanto me serviu para alivio de velhas angústias. Diz-me pois, o que desejas, para que eu possa, mais uma vez, demonstrar o quanto sou grato àqueles que mostram de recompensa.

As palavras com que o rei traduziu o generoso oferecimento deixaram Sessa imperturbável! Sua fisionomia serena não traia a menor agitação, a mais insignificante mostra de alegria ou surpresa.

Os vizires olhavam-no atônitos, e entre olhavam-se pasmados diante da apatia de uma cobiçada que se dava o direito da mais livre expansão.

- Rei poderoso! - retarguiu o jovem com doçura e altivez.

– Não desejo, pelo presente que hoje vos trouxe, outra recompensa além da satisfação de ter proporcionado de Taligana um passatempo agradável, que lhe vem aligeirar as horas dantes alongadas por acabrunhante melancolia. Já estou, sobejamente aquinhoado e outra qualquer paga seria excessiva.

Sorriu, desdenhosamente, o bom soberano ao ouvir aquela resposta, que refletia um desinteresse tão raro entre os ambiciosos Hindus. E, não crendo na sinceridade das palavras de Sessa, Insistiu:

- Causa-me assombro tanto desdém e desamor aos bens materiais, ó jovem! A modéstia, quando excessiva é como o vento que apaga o archote, cegando o viandante nas trevas de uma noite interminável. Para que possa o homem vencer os múltiplos obstáculos que se lhe deparam na vida, precisa Ter o espírito preso às raízes de uma ambição que impulsione a um ideal qualquer. Exijo, portando, que escolhas, sem mais demora, uma recompensa digna de tua valiosa oferta. Queres uma bolsa cheia de ouro? Desejas uma arca repleta de jóias? Pensas em possuir um palácio? Almejas a admiração de uma província? Aguardo a tua resposta, por isso que à minha promessa está ligada a minha palavra.

- Recusar o vosso oferecimento depois de vossas últimas palavras - acudiu Sessa – seria menos descortesia do que desobediência ao rei. Vou, pois, aceitar, pelo jogo que inventei, uma recompensa que corresponde à vossa generosidade; não desejo, contudo, nem ouro, nem terras ou palácio! Peça o meu pagamento em grãos de trigo.

- Grãos de trigo? – estranhou o rei, sem ocultar o espanto que lhe causava semelhante proposta.

– Como poderei pagar-te com tão insignificante moeda?

- Nada mais simples – elucidou Sessa.

– Dar-me-eis um grão de trigo pela primeira casa do tabuleiro; dois pela Segunda, quatro pela terceira, oito pela Quarta, e, assim dobrando sucessivamente, até a sexagésima Quarta e última casa do tabuleiro. Peça-vos, ó rei! De acordo com vossa magnânima oferta, que autorizeis o pagamento em grãos de trigo, e assim como indiquei!

Não só o rei como os vizires e venerandos brâmanes presentes riram-se estrepitosamente, ao ouvir a estranha solicitação do jovem. A desambição que ditara aquele pedido era verdade, de causar assombro a quem menos apego tivesse aos lucros materiais da vida. O moço brâmane, que bem poderia obter do rei um palácio ou uma província, contentava-se com grãos de trigo!

- Insensato! – clamou o rei.

– Onde foste aprender tão grande desamor à fortuna? A recompensa que me pedes é ridícula. Bem sabes que há, num punhado de trigo, número incontáveis de grãos. Devemos compreender, portanto, que com duas ou três medidas de trigo eu te pagarei folgadamente, consoante o teu pedido, pela 64 casas do tabuleiro. É certo, pois, que pretendes uma recompensa que mal chegará para distrair, durante alguns dias, a fome do último "pária"(10) do meu reino. Enfim, visto que minha palavra foi dada, vou expedir ordens para que o pagamento sefaça imediatamente, conforme o teu desejo.

Mandou o rei chamar os algebristas mais hábeis da corte e ordenou que calculassem a porção que Sessa pretendia.

Os sábios calculistas, ao cabo de algumas horas de apurados estudos, voltaram, ao salão para submeter ao rei o resultado completo de seus cálculos.

Perguntou-lhes o rei, interrompendo a partida que então jogava:

- Rei magnânimo - declarou o mais sábios dos matemáticos - calculamos o número de grãos de trigo que constituirá o pagamento por Sessa, e obtivemos um número(11) cuja a grandeza é inconcebível para a imaginação humana. Avaliamos, em seguida, com o maior rigor, a quantas ceiras(12) corresponderia esse número total de grãos, chegamos à seguinte conclusão: a porção de trigo que deve ser dada a Lahur Sessa equivale a uma montanha que, tendo por base cidade Taligana, seria cem vezes mais alto que o Himalaia! A Índia inteira, semeados todos os seus campos, taladas todas as suas cidades não produziria, em um século a quantidade de trigo que, pela vossa promessa cabe em pleno direito ao jovem Sessa!

Como descrever aqui a surpresa e o assombro que essas palavras ao rei Iadava e aos seus dignos vizires? O soberano Hindu via-se, pela primeira vez, diante da impossibilidade de cumprir a palavra dada.

Lahur Sessa - rezam as crônicas do tempo - como bom súdito não quis deixar aflito o seu soberano, depois de declarar publicamente que abriria mão do pedido que fizera, dirigiu-se respeitosamente ao monarca e assim falou:

- Meditai, ó rei! Sobre a grande verdade que os brâmanes prudentes tantas vezes repetem: os homens mais avisados iludem-se, não só diante da aparência enganadora dos números, mais também com a falsa modéstia dos ambiciosos. Infeliz daquele que toma sobre os ombros o compromisso de uma divida cuja grandeza não pode avaliar com a tábua de cálculo de sua própria argúcia. Mais avisado é o que muito pondera e pouco promete! - E, após ligeira pausa, acrescentou

- Menos aprendemos com a ciência vã dos brâmanes do que com a experiência da vida e das suas lições de todo o dia a toda hora desdenhadas! O Homem que mais vive mais sujeito está às inquietações morais, mesmo que não as queira. Achar-se ora triste, hora alegre; hoje fervoroso, amanhã tíbio; já ativo, já preguiçoso; a compostura alternará com a leviandade. Só o verdadeiro sábio instruído nas regras espirituais, se eleva acima dessas vicissitudes, paira por todas essas alternativas!

Essas inesperadas e tão sábias palavras calaram fundo no espírito do rei. Esquecido da montanha de trigo que, sem querer, prometerá ao jovem brâmane, nomeou-o seu primeiro-vizir.

E Lahur Sessa, distraindo o rei com engenhosas partidas de Xadrez e orientando-o com sábios e prudentes conselhos prestou os mais assinalados serviços ao povo e ao País, para maior segurança do trono e maior glória de sua pátria.


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